See you Space Cowboy…
Eis que, em um cenário que lembra um lugarejo mexicano, com sol a pino, temos esse sujeito vestindo um poncho e um grande sombrero. O visual alude claramente ao lendário Estranho sem Nome, personagem vivido por Clint Eastwood na Trilogia dos Dólares de Sergio Leone. E, fazendo jus à referência, o tal sujeito saca uma pistola – só que se trata de uma IWI Jericho 941 – e faz um disparo. O feroz jazz de uma big band explode e essa cena, em que mesmo os enquadramentos emulavam um típico confronto de filme western, sem aviso se transforma numa porradaria; o sujeito magricela, agora sem chapéu ou poncho cobrindo o terno azul e o cabelo desgrenhados, começa a usar movimentos de Jeet Kune Do, arte marcial inventada por Bruce Lee, em cima de um brutamontes, que, acompanhado por uma mulher fatal, não escondem a semelhança com os personagens de Antonio Banderas e Salma Hayek no longa A Balada do Pistoleiro, ponto alto da Trilogia Mexicana de Robert Rodriguez. A briga é interrompida por rajadas de tiros vindas tanto de um carro próximo quanto de uma espaçonave que os sobrevoa, o que acaba culminando em uma perseguição cósmica.
A cena é outra. Uma revoada de corvos sobrevoa uma catedral gótica ao crepúsculo. Uma balada toca ao fundo, e, com um sobretudo, o mesmo carinha de antes se aproxima. Ele se encontra com um conhecido do passado, eles trocam palavras, armas são empunhadas, e estamos claramente em um filme de máfia de Hong Kong. A música para, o tiroteio começa. Impossível não pensar no clímax de The Killer, de John Woo.
Não há música. É noite, tudo são sombras, e o magricela – parece que se chama Spike – sai de um bar apenas para dar de cara com uma sangrenta execução. Mas tem algo de estranho no sujeito. O traço, talvez. Parece mais arredondado, mais cartunesco. Sim, tudo é mais cartunesco, e a animação, em algum lugar entre o obscuro e o surreal, nos leva direto para um episódio de Batman: The Animated Series. O assassino que agora vem para cima do tal Spike lembra uma mistura de Pinguim e Coringa. A luta começa, e você sabe como vai terminar.
Mostre essas sequências para alguém que não conhece Cowboy Bebop e acredito que, não fosse a onipresença de Spike, ela dificilmente concluiria que todas foram tiradas da mesma série. A irreverente mistura de diversos gêneros; as explicitas referências que, cruzando-se, ultrapassam o campo da mera homenagem e acabam por ressignificar o objeto referenciado; a trilha sonora eclética, encaixada de modo simbiótico às cenas, como se cada faixa tivesse sido pensada unicamente para aquele momento; essas são, sem dúvida, características importantes da magnum opus de Shinichiro Watanabe, que há pouco completou 15 anos, firmando-se como um dos maiores clássicos da história da animação japonesa. Características tais, porém, fomentam uma discussão aparentemente infindável que vem acompanhando o título desde sua estreia, em 1998: A que gênero pertence esse anime, cujo mote parece ser brincar com gêneros?
Elementos de ficção científica, dos cinemas western e noir, da comédia – ora satírica, ora nonsense – estão presentes de modo tão intrínseco em Cowboy Bebop que apontar um deles como predominante se mostra impossível. Assim, a série, por misturar tantos gêneros, parece não se enquadrar em gênero algum. Entretanto, há quem diga que a ausência de gênero nessas condições é um novo gênero em si. É nesse sentido que aponta Roberta Regalcce de Almeida na dissertação de mestrado O remix midiático das séries de televisão Cowboy Bebop e Samurai Champloo – cujo argumento central é convincente, embora o trabalho peque, e muito, em termos de pesquisa e estudo individual dos episódios de ambas as séries –, na qual, como aponto o título, tenta analisar as duas grandes realizações de Watanabe sob a ótica do remix. O termo, cunhado nos anos 70 por DJs e produtores musicais, se refere à prática de retirar amostras (samples) de um material original (naquele contexto, músicas de sucesso; neste, os mais diversos tipos de produtos midiáticos) e, a partir deles, criar algo novo. De modo simples, trata-se de uma cópia autoconsciente, que, em razão dessa coincidência, ultrapassa o status de derivado e lança nova luz sobre o original.
Para exemplificar, Quentin Tarantino, capaz de mesclar o cinema de artes marciais asiático dos anos 60 e 70, o western e o exploitation em Kill Bill, e igualmente hábil ao passar de um filme de reféns para um de vampiros no argumento de Um Drink no Inferno (dirigido por, outra vez ele, Robert Rodriguez), é por vezes mencionado, neste e noutros estudos, como um autor de remix. Segundo Roberta Regalcce de Almeida, “a hipótese principal é de que a marca do autor de remix aparece de fato em sua capacidade e habilidade de saber misturar, samplear, redefinir e ressignificar, conjugando contextos diversos em um corpo que possa adquirir qualquer forma ao transferir seu conteúdo sincrético, tornando a obra remixada uma ponte entre várias culturas, criando uma rede simbólica de interação e interconexão com uma miríade de outras representações. Neste sentido, a leitura de uma única obra, permite trafegar por outras, revisitando-as, reconhecendo-as, recontando-as, em um jogo sígnico que redimensiona as fronteiras.” Nesse sentido, ainda segundo a autora, “[Cowboy Bebop e Samurai Champloo] trafegam dentro dessa lógica do remix, não se apropriando de trechos de outras obras, mas transitando dentro do campo simbólico do século XX. Tudo é tecido dentro de uma rede de inter-relações dramáticas.”
É um ponto de vista interessante. Usar tal perspectiva pode ser um dos modos mais viáveis de analisar esses frutos da (pós) modernidade que surgiram nas últimas décadas, sobretudo na virada do século, em um contexto de globalização, diluindo as fronteiras dos gêneros. Mas, sejamos francos, tudo isso não passam de jogos – tentativas de atribuir sentido aquilo que talvez não o tenha. Por exemplo, muitos enxergaram na frase “The work, which becomes a new genre itself, will be called… COWBOY BEBOP” (A obra, que se tornará um novo gênero em si, se chamará… COWBOY BEBOP), que aparece em mais de um momento da série, a prova de que Watanabe almejava criar algo de suma importância. Porém, em entrevista à Wizard Anime Invasion #5, dada no inverno de 2003, o diretor, ao ser indagado sobre o sentido dessa afirmação, respondeu rindo: “Eu não sei! Essa é só uma fase marqueteira que escrevi na proposta do projeto. E um designer acabou inserindo-a no programa sem minha permissão! Tenho que concordar que é exagerada, mas, como o design era bom, eu apenas continuei usando-a. Como a maioria dos japoneses não pode ler inglês, não prestamos muito atenção nisso. Porém, agora alcançamos a América, e soamos pretenciosos.”
Por mais que o resultado final insinue o contrário, ao conhecermos as histórias de realizadores como Watanabe e Tarantino acabamos por descobrir que o verdadeiro intuito deles poucas vezes vai além de criar algo que os divirta. É claro que eles desejam conceber obras inéditas e marcantes, mas quebrar paradigmas, gerar discussões acadêmicas ou ocasionar textos pretenciosos como este certamente não são preocupações para esses homens enquanto criam coisas como CowBe, que, como busco demonstrar a seguir, é antes o resultado de uma série de acidentes furtuitos, casualidades do cotidiano de trabalho de uma equipe repleta de talentos únicos, do que fruto de um esforço sistemático.
O cenário é o seguinte: Nos últimos anos do século XX, lá pelo final de 1996 ou no começo de 1997, notícias crescentes sobre um novo episódio da franquia Star Wars estão agitando o mundo do entretenimento. Executivos da gigante Sunrise sabem que o espaço sideral chamará muita atenção nos anos seguintes, e decidem que a companhia precisa de um anime que permita a comercialização de naves especiais de brinquedo e similares. Masahiko Minami, que viria a fundar e se tornar presidente do estúdio Bones, foi o produtor encarregado de fazer isso acontecer. Em uma série de entrevistas presente nas versões norte-americanas dos DVDs de Cowboy Bebop, Minami, indagado sobre suas intenções para com o projeto, disse apenas: “Estive fazendo histórias de robôs por um tempo, e queria trabalhar em algo diferente desta vez.” O então novato Shinichiro Watanabe havia provado competência dirigindo episódios de Gundam 0083: Stardust Memory e co-dirigindo Macross Plus, à sombra do colosso Shoji Kawamori, e, portanto, foi convidado a assumir essa nova animação. Seus motivos não foram menos pragmáticos que os do produtor: “Me disseram para criar algo que envolvesse espaçonaves e apresentar um projeto. Eles falaram que, contanto que tivesse espaçonaves, não questionariam nada. Por isso eu aceitei.”
No entanto, a despeito de ter aceitado entregar algo cujo fim último era vender brinquedos, o diretor tinha ideias mais ousadas em mente. “Eu queria criar algo que nunca antes visto. Veja bem, você já assistiu muita coisa no passado, e encontrou aquelas das quais gosta. Hoje em dia, muitos tentam apenas recriar o que já viram. Não era isso que eu queria fazer”, disse à época, no mesmo compêndio de entrevistas mencionado acima. E assim foi. Após meses de produção, o projeto foi submetido à aprovação, e refutado com indignadas afirmações de que aquilo não servia, de que não venderia brinquedo algum. Ainda assim, Cowboy Bebop estreou na TV Tokyo em 3 de abril de 1998 para um exibição complicada, que, sob acusações de violência excessiva, seria cancelada em 26 de junho. O show foi resgatado pelo canal WOWOW, sendo exibido por completo de 24 de outubro daquele ano a 24 de abril de 1999. Todavia, aquilo que parecia um fiasco, fracassando na finalidade de vender quinquilharias e mesmo na aparentemente simples missão de se manter na televisão, se tornou um arrebatador sucesso uma vez descoberto pelo público ocidental. Pode até não ter vendido muitas navezinhas, mas é ainda hoje um dos mais queridos animes já exibidos na América.
Mas como se deu esse processo? Como um projeto comercial se transformou em algo inteiramente autoral? O que, afinal de contas, faz Cowboy Bebop especial? Watanabe sem dúvida demonstrou desde o princípio a intenção de realizar tal façanha, porém, ainda que eu veja como o maior responsável, não acredito, como parecem fazer alguns comentadores, que apenas o diretor exista e importe nesse processo criativo. Como já disse, creio que CowBe é produto do esforço conjunto de uma equipe talentosíssima, e ouso dizer que apenas estudando o papel de cada um de seus membros mais importantes se poderá chegar à essência da obra. Os principais nomes da equipe já haviam trabalhado com Watanabe nos dois projetos que lançaram sua carreira: Mobile Suit Gundam 0083: Stardust Memory e Macross Plu – o produtor Masahiko Minami e o character designer Toshihiro Kawamoto no primeiro, a roteirista Keiko Nobumoto e a compositora Yoko Kanno no segundo. Contando ainda com o mecha design do competente Kimitoshi Yamane, e com os roteiristas auxiliares Dai Sato e Sadayuki Murai, que nos anos seguintes se tornariam grandes figuras da indústria, é fácil definir esse time como estrelar. Pois, findada essa imensa introdução, falemos um pouco da contribuição de cada um deles.
The way you look tonight: Toshihiro Kawamoto e a construção de uma identidade visual
“Cowboy Bebop começou para mim quando recebi uma oferta da Sunrise para fazer o character design para um novo projeto. O Sr. Minami, a quem conheci trabalhando em Gundam 0083, era o produtor do show e me perguntou se eu estava interessado em trabalhar com ele numa série de TV. Seu nome preliminar era Shooting Star Bebop.” Assim Toshihiro Kawamoto, que logo ajudaria Minami a fundar o Bones, inicia os comentários do artbook Cowboy Bebop: Illustrations ~The Wind~, uma das melhores, senão a melhor fonte de informação sobre a produção desse clássico. Na fase inicial do projeto, embora os personagens já estivessem mais ou menos definidos, ideias aleatórias como “ação no espaço”, “kung fu” e “sobretudos” eram tudo de que a equipe dispunha. E não era necessário mais do que isso. O argumento de Bebop é bastante simples: no ano de 2071, com todo o Sistema Solar já colonizado e ligado por uma tecnologia de portais hiper-espaciais, acompanhamos um grupo de caçadores de recompensa, conhecidos genericamente como cowboys, em busca do ganha-pão cotidiano. Essa sinopse diz pouco, quase nada sobre o programa, pois Cowboy Bebop não é uma série de conceitos abrangentes, e sim uma de pequenos detalhes. E muitos desses detalhes se materializaram pelo lápis de Kawamoto.
“‘Apenas desenhe algo com o que possamos começar’, foi o que me disseram os produtores”, e foi o que ele fez.
Aí temos alguns sketches iniciais da tripulação da Bebop. Nota-se que muito mudou desse ponto até a estreia televisiva. Embora tenha trabalhado sob supervisão cerrada de Watanabe – ou Nabeshin, como é chamado por Kawamoto –, o designer revela no já citado artbook que gozou de imensa liberdade criativa. Apenas se baseando em conceitos vagos, e fazendo ajustes quando requeridos, Kawamoto é sem dúvida o maior responsável pelo marcante visual da série. Para ilustrar, falemos separadamente sobre os personagens.
Bem, eis o Spike, um homem nascido em Marte. A principal influência, sem dúvida, é o Lupin III. Fato curioso sobre o personagem, revelado na entrevista para a Wizard Anime Invasion já mencionada, é que a concepção de design buscava criar um personagem cool, maneiro, que contrastasse com a sensualidade de Faye e o aspecto taciturno de Jet. E, a fim de fazê-lo parecer legal, Kawamoto seguiu o caminho inverso; o desenhou com pernas muito compridas, na intenção conferir uma aparência desengonçada, além de fazê-lo com as costas meio curvadas e imprimir em seu rosto uma expressão que em geral varia entre o triste e o cansado. Desse modo, o personagem parecia totalmente uncool. E o contraste entre essa aparência propositalmente debochada e seus incríveis feitos nas cenas de ação é onde se encontra boa parte de seu carisma. Uma coisa que não posso provar, mas que sempre tomei como verdade, é que Spike é de algum modo baseado no Philip Marlowe interpretado por Elliott Gould no clássico do neonoir – como mostrarei mais para frente, Kawamoto entende bastante do gênero – Um Perigoso Adeus, de Robert Altman.
Faye Valentine, por sua vez, é uma típica femme fatale. Chinesa, baseada na superestrela Faye Wong, é a figura mais jovial do grupo, ainda que sobre certo aspecto seja também a mais lamentável. Inicialmente, sua vestimenta foi imaginada como um sexy vestido chinês, ideia vetada por Watanabe, embora ele a tenha usado na abertura da série. O diretor, ao lado do designer de cores Shihoko Nakayama, também queria que a jaqueta que se tornou a marca registrada da personagem fosse de um preto cromático, como se vê acima, e foi decisão de Kawamoto trocar tal coloração pelo amarelo vibrante que conhecemos.
Jet, com seu braço mecânico, é o único personagem que denuncia visualmente se tratar de uma animação futurística. Nasceu em Ganímedes, principal lua de Júpiter, e é certamente baseado no Jigen de Lupin III. Detalhe engraçado, e que mostra o quão espontâneo e livre foi o processo de produção de CowBe, é aquele traço metálico em sua bochecha. Ainda na entrevista à Wizard, quando perguntado sobre o significado daquilo, o designer respondeu: “Eu não queria que os personagens fossem simétricos, então adicionei algumas coisinhas. Coloquei aquilo lá sem pensar em nada específico. Achei que o diretor fosse dar algum significado a isso depois, mas ele não o fez”. Importante ainda notar que a sugestão de cores feita por Kawamoto na última das imagens acima foi totalmente alterada no produto final, mostrando a voz ativa de Watanabe e Nakayama no processo.
Edward Wong Hau Pepelu Tivrusky IV, como vocês devem ter notado, foi concebido como um garoto, sendo transformado às pressas por ordem do diretor, quando a produção dos primeiros episódios já estava encaminhada. (Vale lembrar que esse tipo de decisão de última hora é comum, pois, diferente dos desenhos americanos, as animações japonesas são feitas simultaneamente à exibição, e não raro o episódio da semana só é entregue na emissora poucas horas do programa ir ao ar, o que também explica o grande número de aperfeiçoamentos feios nas versões para home vídeo.) Como uma brincadeira de bastidores, a versão masculina de Ed foi utilizada no 5º episódio da série.
A pedido de Watanabe, a versão feminina de Ed, uma terráquea, foi baseada em ninguém menos que a excêntrica compositora Yoko Kanno. De volta ao artbook ~ The Wind ~, o ilustrador comenta: “A produção do 1º episódio estava prestes a começar, mas como Ed não apareceria até o 9º, ainda havia bastante tempo para repensar. O diretor me disse que imaginava Ed como sendo a Srta. Yoko Kanno. Ela estava sempre deitada por aí na sala de mixagem. (Risos.) Mas a imagem que eu tinha dela na época ainda era a da compositora de Macross Plus e Escaflowne, você sabe, alguém que rege uma orquestra. Então as instruções não fizeram sentido para mim. Ainda assim, desenhei algo como um gênio com um visual que lembrasse um gato, tentando encaixar nisso o que havia ouvido. Ed foi transformada em uma garota nesse estágio.”
Fechando a tripulação, Ein, a mascote, é assumidamente a personagem predileta de Kawamoto. Então inexperiente desenhando animais, ele pediu para que um amigo mandasse fotos e vídeos de seu welsh corgi, chamado Billy, para que praticasse. Ein é baseada nesse cão, e desenha-la se tornou o maior divertimento de Kawamoto. Em julho de 1997, ele adquiriria seu próprio corgi, Coline, e posteriormente o levaria com frequência para o estúdio a fim de inspirar os demais animadores. Durante toda a produção ele importunaria Watanabe, dizendo-o para “dar mais amor ao cachorro”, e muitas das aparições de Ein durante o anime se devem a essa insistência. A perícia conquistada com essa experiência o levou a desenvolver os lobos de Wolf’s Rain, série criada anos depois pela parceira de time Keiko Nobumoto para o recém-criado Bones.
“Um cara que carrega uma espada japonesa”, era essa a única orientação quanto ao vilão Vicious, que não fora planejado como o grande antagonista da série, e sim como um personagem secundário ou convidado. O cinza é a cor que o caracteriza, e, respeitando essa ideia, Watanabe exerceu esse tom nas cenas que o envolvem.
O trabalho do designer, no entanto, não se resumiu a dar vida aos personagens. Após essa fase, todo o material de divulgação do título, como pôsteres, ilustrações para revistas como a Newtype, capas de DVDs e dos CDs da trilha sonora seriam concentradas em suas mãos. E se engana quem pensa que o marketing é uma parte menor do trâmite, pois o desenhista se deu ao trabalho de conferir personalidade a esse material, permitindo que ideias centrais de Bebop alcançassem mesmo aqueles que nunca assistiram ao programa, mas já esbarraram com essas imagens por aí. Vejamos, por exemplo, o que Kawamoto tem a dizer sobre a ilustração acima, uma das primeiras a aparecer nas revistas especializadas japonesas: “Essa ilustração é de antes da estreia na televisão. Um certo número de episódios já estava concluído, mas os leitores não sabiam disso. Os editores não tinham nenhuma demanda específica em mente, então tudo cabia a mim. Se eu pudesse decidir, teria desenhado apenas um cachorro! (Risos). Essa é a única imagem em que desenhei Ein tão grande assim. Nesse momento, eu já estava determinado a fazer a atmosfera desse show ser algo totalmente diferente, usando distorções e efeitos de cor”. E ele certamente levou a cabo sua decisão.
A ideia do remix também foi captada pelo ilustrador, que, a pedido de outrem ou por iniciativa própria, fez homenagens a diversos sucessos do cinema, álbuns consagrados e mesmo a capas de trilhas sonoras em suas peças de divulgação, mostrando que, como nenhuma outra antes dela, a série conversa com um sem número de estilos. Abaixo vemos referências aos filmes Bonequinhas de Luxo, Por Uns Dólares a Mais, Los Angeles – Cidade Proibida, Os Intocáveis e e Os Suspeitos (os três últimos, grandes expoentes do neonoir).
Abbey Road, dos Beatles, e CD da trilha sonora do filme Bullitt, estrelado por Steve McQueen, se destacam na também expressiva carga musical das referências.
A todo esse trabalho, soma-se a missão de expandir o universo da série no imaginário do espectador, presenteando-o com recortes de momentos nunca mostrados no anime. Poucas vezes durante o show vimos a tripulação em momentos de calmaria, apenas relaxando, mas não é difícil concluir ocasiões como essa de certo ocorreram no interim entre uma caçada e outra. E, embora saibamos que Spike e Vicious tenham sido amigos no passado, jamais nos deparamos com cenas que o sugiram. Captando essas situações nunca vistas em tela, os rabiscos de Kawamoto rompem a barreira da reles divulgação, ligando-se de modo orgânico ao produto original, complementando-o.
Por fim, chamo atenção àquela que talvez seja minha ilustração predileta dessa estirpe. É algo que nunca aconteceu, um café da manhã onde três Fayes – a colegial, do passado longínquo, a que acabara de ser acordada após 50 anos, e a que conhecemos e adoramos – se encontram. O filtro esbranquiçado, o mesmo utilizado na série ao abordar o passado da personagem, evoca a atmosfera de sonho e melancolia que permeia suas memórias. É difícil olhar o desenho sem pensar que tal recorte poderia ter sido uma cena do anime. Isso porque Kawamoto fez mais que imaginar personagens e depois inseri-los em peças de marketing; reproduzindo as experimentações, as referências e mesmo o clima que veríamos na animação, ele foi o principal responsável por criar a identidade visual (algo cada vez mais raro nessa indústria) sem a qual Cowboy Bebop não seria o que é.
Fly me to the moon: Brilho e ferrugem nas naves de Kimitoshi Yamane
A sequência de lançamento do Columbia, ápice do episódio Wild Horses, é uma das mais memoráveis do anime, e reúne dois dos principais elementos que fazem dele um marco: seu belo mecha design e o detalhismo que pode ser observado em cada trecho do programa. Essa cena dura cerca de dois minutos, deliciosamente passados ao som de Too Good, Too Bad, e expõe as características já citadas – o sóbrio design que emula o primeiro ônibus espacial da NASA (em 2003, quatro anos após a exibição desse capítulo, ele viria a explodir), e sua reprodução detalhada, feita por diversos ângulos, que visa, através da apresentação de cada um de seus fragmentos, dar ao espectador uma visão da totalidade do mecanismo. Esses aspectos surgem do choque dos talentos de dois homens: Yamane Kimitoshi, responsável pelo visual, e, é claro, Shinichiro Watanabe, a quem coube por apresentar-nos tal visual em minúcias.
Relembrando que a função original de CowBe era vender réplicas das naves espaciais que apareceriam no desenho, o design destas era sem dúvida uma questão de primeira ordem. Yamane Kimitoshi, que trabalhara anteriormente em títulos cultuados como Mobile Suit Gundam: The 08th MS Team e The Vision of Escaflowne, foi o profissional incumbido da tarefa. E ele a cumpriu com excelência. Seus veículos são críveis e facilmente aceitos pelo público, que consegue intuir apenas pelo visual as características de cada nave. O fato de o profissional tomar como modelos equipamentos reais é definitivamente um dos causadores dessa imediata familiaridade. É desnecessário mencionar novamente o Columbia, que dificilmente poderia ser considerada um mérito de Kimitoshi, portanto peguemos a Bebop, principal embarcação da série, assim nomeada em virtude do amor de Jet, seu capitão, pelo jazz (engraçado que, substituído Jet por Watanabe, o mesmo se pode dizer sobre o título do anime).
A nave foi baseada nos cargueiros de pesca do nosso mundo, e, não por acaso, era essa sua função original no universo da série: uma antiga embarcação pesqueira de Ganímedes, comprada e modificada pelo ex-policial que decidiu caçar recompensas. A Hammerhead, transporte pessoal Jet, realizava também alguma tarefa mundana semelhante, como indica seu grande gancho, que lembra apetrechos utilizados na construção civil. Importante reparar em seu nome, que remete a uma criatura aquática, o tubarão-martelo, fato que se repete com os veículos dos outros dois protagonistas.
Já a Swordfish II, nave de Spike que remete ao peixe-espada, é baseada no avião militar britânico Fairey Swordfish, considerado o mais bem-sucedido torpedeiro utilizado durante a Segunda Guerra Mundial, embora aviões superiores em potência tenham surgido aos montes durante o conflito. Transmitindo dinamismo em cada um de seus traços, é de cara identificada pelo espectador como uma veloz nave de combate.
A Red Tail da Faye, em alusão ao tubarão de cauda vermelha, é a mais estranha, a mais futurista das naves da tripulação, e não lembra nada de nosso mundo. Consistindo basicamente em um cockpit rodeado por armamento pesado, é provavelmente a mais versátil das máquinas da série no quesito combate.
Sobriedade e um grande leque de referências, características presentes em todos os momentos de Cowboy Bebop, e que, como não poderia deixar de ser, ressoam também nos designs de Kimitoshi. Observo ainda que seus veículos sempre nos parecem de certo modo velhos, avariados. Aspecto gasto que não só confere mais verossimilhança a eles, como também compactua com toda uma proposta de universo. Esse ponto será mais explorado adiante, porém, em resumo, a série se propõe a acompanhar não as altas camadas dessa sociedade futurista, e sim seus marginais e desfavorecidos – conhecemos o mundo de 2071 por meio dos caçadores de recompensa, caminhoneiros, apostadores, ladrões, traficantes e mafiosos, e a sujeira, aranhões e remendos em suas naves são a marca visual dessa proposta.
Como mencionei os caminhoneiros do espaço, convém fechar esse tópico rememorando a cena inicial de Heavy Metal Queen, em que o estilo de Yamane Kimitoshi e o modo como este foi passado para o audiovisual fica patente. Durante aproximadamente um minuto, agitado por LIVE in Baghdad, vemos, parte a parte, um dos grandes caminhões de carga que trafegam pelo Sistema Solar. O caminhão, mesmo antes de ser assim nomeado, é imediatamente reconhecido como tal pelo espectador. Essa familiaridade, conforme já apontado, talvez seja o maior mérito do designer. E uma vez mais o diretor lança mão dos detalhes para nos mostrar o todo. Detalhes que, em se tratando de um trabalho de Watanabe, são mais importantes do que parecem.
These foolish things: Um universo em aberto, um universo em detalhes
Na realidade, tenho para mim que a assombrosa riqueza de detalhes é o maior atrativo do universo de Bebop. Mais instigante ainda é que essa riqueza se esconde num universo propositalmente repleto de lacunas.
Nas anteriormente comentadas entrevista para os DVDs norte-americanos, o diretor, questionado sobre o que mais demandou tempo na produção do anime, respondeu: “Eu tive que criar um novo mundo passo a passo e fazê-lo parecer repleto de vida. Tive que considerar cada aspecto desse mundo, incluindo lixeiras e cabos telefônicos. Geralmente não penso nesse tipo de coisas, porque isso é um saco, mas, quando o faço, leva um bocado de tempo.” E esse tempo certamente foi bem empreendido, visto que o Sistema Solar em que transitam nosso grupo de mercenários é meticuloso. No futuro da série, a humanidade desenvolveu-se tecnicamente a ponto de tornar realidade duas atividades ainda inviáveis: grandes expedições interplanetárias e a colonização espacial. Esta agilizada pelos “portais”, estruturas que ligam rapidamente pontos distintos do universo através do hiperespaço, aquela por técnicas de terraformações. Em 2022, a explosão de um “portal” experimental destruiu boa parte da lua, ocasionando uma chuva de detritos que dizimou parte da população terrestre e tornou o planeta quase inóspito. Por conta desse incidente a migração interplanetária fez-se inevitável, e no ano de 2071, no qual se desenrolam as aventuras da tripulação da Bebop, quase toda a humanidade se encontra em planetas, luas e asteroides distantes de seu berço.
Apesar de dispormos desse montante de informação, pouco sabemos sobre os pormenores dessa colonização; a politica, as questões nacionais (ou seriam planetárias?) também nos são completamente obscuras. Porém, essas omissões não são frutos de desleixo. Em entrevista dada em dezembro de 2012 durante o Anime Festival Asia (AFA), o Watanabe comentou: “Tento manter isso em mente sempre que estou dirigindo: nunca colocar muita explicação na história, pois se eu o fizer, não haverá espaço para a imaginação dos espectadores. E uma boa história deve ser bem balanceada; se ela é muito complicada, os espectadores teriam dificuldade em segui-la. Por isso sempre me preocupo com o balanço”. Criam um mundo consistente, mas flexível, que permitisse que o fã especulasse livremente, era a meta do artista. Estudar os ambientes em que se passam as aventuras da série, ambientes estes desenvolvidos pelo designer, animador e diretor Isamu Imakake, que contou com a ajuda de ninguém menos que Shoji Kawamori, me parece a melhor forma de descobrir se o diretor obteve sucesso ou se fracassou.
Marte, o mais populoso corpo celeste do universo de CowBe, tem suas cidades localizadas em crateras que cobrem a superfície do planeta. Hong Kong é o modelo arquitetônico para a grande metrópole inominada em que se passam boa parte dos episódios, e os ideogramas chineses dominam ruas e fachadas, embora a escrita japonesa e mesmo a ocidental possam ser vistas aqui e acolá. Os chamados sindicatos criminosos que dominam a cidade, nos quais se mesclam elementos da Tríade retratada nos filmes de John Woo e da Yakuza indolente de Seijun Suzuki, também são herança dessa supremacia oriental. Watanabe gasta certo tempo mostrando cada uma de suas cidades, e, fato comum a todas, não as retratas como locais estéreis pelos quais os personagens por acaso passam, mas como organismos vivos, nos quais se encontram transeuntes, trabalhadores, vendedores e vagabundos; sempre vemos comerciais de Coca-Cola ao de Pippu (referência a Pepsi) por aí, e as lojas estão abertas a todo o momento; em suma, há atividade humana nas ruas de Bebop. Alguns locais de Hong Kong são literalmente transpostos para a tela, como ocorre com o Parque Kowloon em Boogie Woogie Feng Shui, 21º episódio da produção. Já no filme Knockin’ on Heaven’s Door, lançado em 2001, são reproduzidas muitas localidades do Marrocos. Mas este é um assunto para outro texto.
A colônia de Tijuana, um asteroide nos arredores de Marte, que visitamos apenas no episódio introdutório da série, Asteroid Blues, revela já em seu nome influência mexicana (o que se nota com efeito na cena que descrevi no primeiro paragrafo do texto). Lugar pobre e violento, tendência histórica das colônias, fomenta sua população a almejar vida melhor na metrópole marciana, ainda que para isso o crime seja o único meio. Esse cenário, condensado no casal fugitivo do primeiro episódio, levanta uma série de questões sobre as relações interplanetárias e a política migratória desse futuro. Questões estas que, jamais tocadas novamente, ficarão para sempre na mente dos fãs, demonstrando o sucesso do criador desse mundo em seu propósito de revelar o suficiente e nada além disso.
Vênus aparece apenas no 8º episódio de CowBe, Waltz for Venus, e a cidade que conhecemos é uma réplica espacial Istambul, na Turquia. As áreas urbanas do planeta são na realidade ilhas flutuantes, pois, em razão das demasiadamente hostis condições climáticas, o processo de terraformação do solo falhou, gerando um vasto deserto. Essas ilhas ostentam uma abundante quantidade de uma planta desconhecida, que serve para filtrar o dióxido de carbono da atmosfera, tonando o mundo habitável. Contudo, a atmosfera modificada gerou um mal conhecido como doença de Vênus, que pode levar à cegueira. Outra planta, a Grey Ash, é capaz de curar a doença, mas, por ser muito rara, a espécie acaba por ser disputada a preços milionários no mercado negro. Esse pano de fundo sci fi, que, quando analisado desse modo, é elaborado e consistente, nos é revelado em questão de minutos ainda no início do episódio. Ele consegue, ainda assim, agir como motor do plot, em um belo exemplo de comunhão entre cenário e roteiro.
Júpiter nunca é mostrado na animação. Não sabemos sequer se há ou não humanos vivendo no planeta. Mas em sua jornada a Bebop passa por três das quatro luas de Galileu (satélites de Júpiter descobertos pelo gênio italiano em 1610), sendo elas Ganímedes, Calisto e Europa.
Ganímedes, maior satélite natural de nosso Sistema Solar, é retratado como um ambiente de vastos mares, no qual a pesca é a principal atividade. Interessante notar que essas noções nunca são apresentadas de forma explicita, e sim sugeridas em diálogos casuais, como ocorre no 4º capítulo, Gateway Shuffle, quando Jet, estudando o cardápio de um restaurante, faz uma observação sobre os ratos marinhos, iguaria típica de sua terra natal. Esses mesmos animais são “defendidos” pelos ecoterroristas da facção The Space Warriors, antagonistas do episódio, em outra demonstração de sutileza ao situar os eventos em dado contexto. Vale ainda lembrar que tanto a Bebop quanto a Hammerhead eram originalmente naves de pesca que atuavam nos mares de Ganímedes. Visualmente, como vemos em uma das cenas contemplativas mais bonitas de toda a série (falo do momento em Ganymede Elegy em que Jet, retornando a seu habitat após longos anos, caminha pelas pobres docas da cidade em busca de seu antigo amor, tendo a encantadora The Singing Sea tocando), a base é Marselha, a mais antiga das cidades francesas e o maior porto comercial do mundo.
Calisto talvez seja o mais miserável dos lugares explorados. Na cidade de Blue Crow, onde se desenrolam Jupiter Jazz partes 1 e 2, meus dois episódios prediletos do anime, impera o frio, e a utilização de máscaras por boa parte dos figurante sugere problemas com a qualidade do ar. Construções inacabadas, lixo pelas ruas e pessoas cabisbaixas – esse é o cenário, e as vestimentas da população, assim como as placas da rua, revelam inspiração russa, mas, sem nenhum monumento de destaque, pode se tratar de uma homenagem a Moscou, a São Petersburgo ou a qualquer outra cidade da região. Por razões não reveladas não há mulheres vivendo em Calisto, mas sabe-se que tal lua serve como refúgio e ponto de encontro para criminosos. Será que as construções e obras indicam que a cidade ainda está sendo erguida e que processo de terraformação não foi inteiramente concluído? Ou quer dizer que Calisto foi abandonado, tornando-se esconderijo da escória? Dúvidas eternas.
Europa, palco do divertidíssimo Mushroom Samba, 17ª session de Bebop, é um satélite em processo de povoamento, quase inabitado. Intermináveis estradas e ferrovias, no entanto, já foram construídas como parte de um grande empreendimento chamado Western World, que, devido ao nome e ao fato de o único povoado mostrada no satélite se assemelhar a uma cidadezinha do Arizona, indica domínio norte-americano.
Outros pontos do Sistema Solar, ainda que jamais mostrados em detalhes, são importantes ao longo da trama. Plutão, por exemplo, é o planeta em que se localiza a maior prisão de segurança máxima do universo, para a qual os detentos amotinados do 16º episódio, Black Dog Serenade, se dirigiam. Já Titã, maior lua de Saturno e a segunda maior de todo o SS, é um infernal deserto em que se travou uma guerra. Nela combateram Vicious e Gren, o trágico perdedor de Jupiter Jazz. As razões do conflito e as forças envolvidas nunca foram mencionadas, mas, uma vez que Gren deveria receber o pagamento da transação realizada com seu antigo companheiro em “opalas de Titã”, podemos imaginar ter se tratado de uma disputa pelos metais e pedras preciosas existentes naquele satélite. E, bem, aqui estou eu fazendo conjecturas. Uma prova cabal do sucesso de Watanabe ao criar um universo sólido para os propósitos imediatos, mas facilmente maleável na mente dos fãs.
E os detalhes cenográficos não param por aí. É impressionante notar como pequenezas ignoradas na maioria das produções receberam atenção em Cowboy Bebop, ainda que esses traços, que alguns julgariam insignificantes, passem batidos pelo grosso da audiência. Já foi mencionado, por exemplo, que a pistola de Spike é baseada em um modelo real, a IWI Jericho 941; esse fato se repete com os outros dois protagonistas adultos: Jet carrega uma alemã Walther P99, e Faye uma .45 Glock 30, de origem austríaca.
Há também o constante esforço de nomear os estabelecimentos (em sua maioria bares) por que passam os personagens. Nomes que, por incrível que pareça, nem sempre são destituídos de significado. Para dar uma pequena demonstração, notem, no 7º episódio, que a lanchonete em que Faye se depara com o Decker, criminoso que guarda indisfarçada semelhança com o cineasta Woody Allen, chamasse, justamente, Woody’s.
Também é fácil constatar que a escolha do nome La Fin (O Fim) não foi feita ao acaso para o boteco decadente dirigido por Alisa, antiga paixão de Jet, apenas considerando o que o retorno a tal local representa na trajetória de ambos os personagens.
Nessa curiosa série de brincadeiras, minha predileta é definitivamente a vista no penúltimo capítulo, The Real Folk Blues Parte 1, em que os realizadores nomeiam o bar em que o ocorre o súbito tiroteio que marca o início do fim como Loser Bar. Um golpe pesado, irônico, que compactua com minha interpretação particular sobre a ideia central de CowBe, que exposta mais a frente.
E mesmo os locais que não encerram nenhuma metáfora, como o El Rey (no qual se passa o famigerado massacre do 1º episódio), o Denis’ Bar (onde se passa o combate entre Spike e Asimov narrado no início deste aparentemente infinito escrito), o Rester House (em que Faye e Gren se encontram) ou a Academie de Billard C’est la vie (da qual Spike sai para esbarrar com Pierrot le fou) servem para conferir realismo, autenticidade e vida a esse rico universo.
Body and Soul: A face e as faces do remix
Uma cena que eu acredito demonstrar com exatidão outra importante faceta da série ocorre em seu 9º episódio, Jamming with Edward, quando Jet visita uma comunidade subterrânea da Terra em busca de informações sobre um misterioso hacker. Ele interroga cinco transeuntes e recebe informações contraditórias de cada um deles. Não há nada de muito relevante no fato em si, mas os personagens anônimos que dele participam merecem um segundo de atenção.
Um hiponga moreno e magrelo, um grupo de homens de aspecto indiano, um ancião de traços orientais, uma mulher loira e robusta e um garotinho negro. Em sua breve caminhada, o ex-policial se depara com pessoas de diversas etnias. Essa pluralidade que não se restringe a Terra, podendo ser observada em todos os cantos do Sistema Solar apresentado. E o crédito deve novamente ser dado ao brilhante Toshihiro Kawamoto. Vejam vocês que a própria tripulação da Bebop é composta por um caucasiano de Marte, outro de Ganímedes, uma terráquea oriental, uma garotinha que cresceu nos trópicos e uma cachorra criada em laboratório. Em uma mídia quase sempre presa à cultura local como o anime, esse time de produção conseguiu desenvolver um produto de alcance global, repleto de referências a obras e culturas diversas, o que sem dúvida ajuda a explicar o arrasador sucesso da animação no Ocidente.
Comentando essa aceitação mundial na já tantas vezes citada entrevista para a Wizard Anime Invasion #5, Watanabe argumentou que “há diversos culturas e países no mundo, mas as coisas essenciais permanecem as mesmas em todas elas. Quando se vê coisas divertidas, você ri. Quando vê algo melancólico, você fica triste. São coisas comuns a todos.” E essa ideia encontra-se na representação visual dos personagens, que pertencem as mais diversas étnicas sem jamais serem estereotipados (a não ser quanto a estereotiparão faz parte da brincadeira, como quando o diretor homenageia o cinema blackexploitation). Assim, fugindo das em geral caricatas representações do Ocidente vistas nos animes e mangás, um personagem negro em Bebop pode ser intrépido e divertido, como é o caso de Miles, ou frio e sanguinolento, como Udai Taxim, exatamente como se dá na vida real, onde a cor da pele nada tem a ver com a índole de um indivíduo.
Essa representatividade não é, no entanto, usada de modo alheatório, sendo manobrada com perspicácia para introduzir o espectador no contexto do episódio e amplificar a eficácia das referências deste. E aqui tornamos novamente a falar de remix midiático, essa característica de empregar em uma obra referências a gêneros que parecem dissonantes, dando-lhes novos significados. Vejamos alguns exemplos.
O cômico Stray Cat Strut, 2º episódio do programa, é um grande tributo aos filmes de Bruce Lee, em especial ao desastroso, porém icônico Jogo da Morte (do qual Quentin Tarantino tiraria o macacão amarelo usado por Beatrix Kiddo de Kill Bill). Nesse longa o lutador realiza uma de suas lutas mais memoráveis, o confronto contra Kareem Abdul-Jabbar, grande nome da NBA e um dos mais célebres discípulos do Jeet Kune Do.
Desnecessário dizer que Abdul Hakim, antagonista do episódio, é baseado em Abdul Jabar, e que as referências não param por aí. Todo o cenário marciano, que, como já dito anteriormente, é baseado em Hong Kong, evoca em cada traço a pobre e mística capital dos filmes de Bruce. Além disso, em certo momento podemos ver Spike manuseando o nunchaku do mesmo modo que o maior dos astros orientais do cinema de ação em O Voo do Dragão.
Abro um adendo para apontar um trejeito da afiada direção de Watanabe. Alguns devem ter notado que no início do texto, na sequência de imagem que retrata o combate entre Spike e Asimov, há dois planos curiosos (4ª e 5ª imagens), exatamente opostos, onde vemos as mãos dos combatentes, prontos para iniciar o duelo. Esse é um recurso extremamente comum no cinema western, que serve para mostrar de modo rápido e infalível a eminencia de um confronto. Consciente ou inconscientemente, o diretor usa variações desses planos opostos em diversos momentos do anime, sendo o primeiro encontro entre Spike e Hakim um deles.
O remix também é a tônica de Mushroom Samba, que aloca o western spaghetti e o blaxploitation nos mesmos vinte e tantos minutos de diversão ininterrupta. Nele, figuras negras austeras são postas na tela uma após o outra, ainda que, no fim, todas sejam derrotadas de modo hilário pela dupla Ed e Ein, que faz aqui sua mais iluminada performance. A personagem Coffy pega seu nome emprestado de um filme homônimo de 1973, estrelado por Pam Grier, maior representante feminina do movimento. Após o declínio do blaxploitation, a atriz ficaria na obscuridade até ser resgatada por – adivinhem só – Tarantino em seu incompreendido Jackie Brown.
Já o personagem que se autointitula irmão mais novo do Shaft, além de ostentar a referência explicita nessa afirmação, é visto carregando um caixão em sua primeira aparição, o que remete diretamente a Django, de 1966. O destino, abusando da ironia, fez com que o grande Taranta revisitasse o mesmo filme em seu recente Django Livre, que mistura o movimento de afirmação dos negros norte-americanos e a corrente mais cínica do cinema bang bang, tal qual fizera seu par espiritual japonês mais de uma década antes. E não sei quanto a vocês, mas eu acho divertido que dessa união tenha surgido um dos trabalhos mais violentos de Tarantino, ao passo que Watanabe dela tirou um dos episódios mais amenos de Bebop.
Falando em western, seria impossível não citar a 22ª session, Cowboy Funk, a predileta de uma significativa parcela dos fãs. Aqui o western spaghetti (e o gênero samurai que exerceu grande influência sobre ele) é foco, porém o trágico vilão da aventura, Teddy Bomber, nada tem a ver com essa temática, sendo uma referência a Ted Kaczynski, mais conhecido como Unabomber, um terrorista não tão afável quanto o do desenho, embora seu propósito não fosse menos ridículo que o deste.
Quanto a Andy, não se trata de referência a nenhum personagem em particular, sendo, antes disso, um amalgama dos heróis tradicionais do gênero em questão. Gostaria ainda de apontar que nesse episódio Watanabe utiliza os planos inversos dos quais falei há pouco com grande frequência, e desta vez certamente o faz de maneira deliberada.
Nem todas as homenagens são, no entanto, dotadas de grande significado. Algumas não passam de brincadeiras que, assim como as concernentes aos nomes dos estabelecimentos, servem para enriquecer o universo. Por exemplo, MPU, a inteligência artificial que adquire coincidência no 9º episódio, é uma clara homenagem ao HAL 9000 de Kubrick, quer falemos da estrutura de seu nome, quer indiquemos seu visual.
2001 – Uma Odisseia no Espaço seria revisitado novamente em Toys in the Attic, 11ª session, que, apesar disso, tem como principal influência Alien, o 8º Passageiro, película que, levando para o espaço o cinema de terror, seguiu convenções que são respeitadas no episódio, como, por exemplo, a de ocultar por grande parte da trama a face do monstro, dando ênfase na atmosfera e no mistério. Voltando a Wild Horses, vemos que tanto Doohan quanto Miles foram nomeados tendo em vista engenheiros da franquia Star Trek. No campo dessas brincadeiras menores, a mais divertida é, sem dúvida, a onipresença do trio de velhos Antônio, Carlos e Jobim, alusão descarada ao nosso grande compositor, que indica a paixão do diretor pela música brasileira – paixão esta que seria reafirmada em Michiko e Hatchin, primeiro anime dirigido por sua protegida Sayo Yamamoto, no qual Watanabe atuou como produtor e consultor musical.
Falando sobre essa trinca de personagens , Nabeshin fez um comentário na tal entrevista à Wizard que põe em aberto outro dos atenuantes de seu estilo. Na ocasião, ele disse: “Eu geralmente gosto dos personagens menores. E também daqueles personagens que não contribuem em nada para a história. Quando usei pela primeira vez os três velhos que aparecem no primeiro episódio, achei-os interessantes, então continuei a coloca-los nos episódios seguintes.” Anos depois, com o filme, ele os “remediria”, fazendo-os salvar o dia. Mas, como já dito, o filme é assunto para outra ocasião. O importante é que a fala explica algo que vemos em todos os seus trabalhos: o apresso pelos personagens secundários, terciários e figurantes. Se em outras obras esses tipos não passam de escadas para os protagonistas, nas realizações de Watanabe são personas dotadas de luz própria, que competem com as figuras centrais em carisma e complexidade. Os dilemas do imortal Wen, que anseia pela destruição, e da dupla de irmãos Lin e Shin, que buscam honra em um mundo onde ela não mais existe (e talvez nunca tenha existido) não são menos dignos de análise que os da tripulação da Bebop, apesar da imensa diferença no tempo despendido para tratar de cada qual.
Enfim, seria possível continuar com esse jogo de achar pelo em ovo por páginas a fio, sem, no entanto, esgotar a insondável bagagem simbólica da série. Esse nunca foi meu intuito, e, creio eu, é um objetivo vão, que acabaria, em sua dissecação meticulosa, por deixar de lado o ritmo que embala todas essas referências. E não dá para imaginar Cowboy Bebop sem ritmo.
It don’t mean a thing (if it ain’t got that swing): Yoko Kanno e os cintos de segurança
Sem ritmo não estaríamos falando de CowBe. A música se encontra no cerne da série; mais que isso, a música foi seu embrião. Na mesma entrevista à Wizard que venho citando incessantemente, Yoko Kanno, principal responsável por essa histórica trilha sonora, ao falar sobre as origens do projeto, afirma que “a música veio primeiro, antes de todo o resto ser criado. Provavelmente por volta de um ano antes de começarmos – ou mesmo antes de o título estar definido – eu já estava compondo músicas, e entreguei a Watanabe-San uma porção delas.” No mesmo trecho a informação é confirmada pelo diretor, que acrescenta: “Nos criamos a série a partir das primeiras peças. Mas após começarmos a produção, ela continuou escrevendo mais músicas, então as usamos também.” Em suma, antes que Kawamoto e Yamane dessem início ao desenvolvimento do visual, antes que Nobumoto e sua equipe começassem a escrever os acontecimentos, e antes mesmo que Watanabe tivesse uma visão geral do que tinha à frente, Kanno já mostrava serviço. Não é desprezível lembrar que, posteriormente, cada episódio do anime seria chamado de session, ideia que surge da jam session jazzística, uma sessão de desprendimento, de improviso – alegoria perfeita para os 26 capítulos de temáticas livres e variadas que seriam entregues. Não obstante, quase todas as sessions guardam homenagens ainda mais diretas em seus títulos, quer referenciem estilos ou elementos musicais (Asteroid Blues; Ballad of Fallen Angels; Heavy Metal Queen; Waltz for Venus; Ganymede Elegy; Jupiter Jazz; Black Dog Serenade; Mushroom Samba; Boogie-Woogie Feng-Shui; Cowboy Funk; e Brain Scratch), quer se apropriem dos nomes de canções e álbuns pré-existentes (Stray Cat Strut, do Stray Cat; Honky Tonk Women, Sympathy for the Devil, Jamming with Edward e Wild Horses, todas dos Rolling Stones; Toys in the Attic, do Aerosmith; Bohemian Rhapsody, do Queen; My Funny Valentine, de Richard Rodgers e Lorenz Hart; Speak Like a Child, de Herbie Hancock; Hard Luck Woman, do KISS; e The Real Folk Blues, de Muddy Waters). Assim, não é exagero dizer que o universo de Bebop cresceu em torno da música.
No início dos anos 90, no entanto, a excêntrica e talentosa figura de Yoko Kanno não sonhava estar no centro de algo dessas dimensões. À época, sua especialidade eram os comerciais de televisão, área na qual ela, uma compositora de formação clássica, causou alguma impressão. Macross Plus, projeto em que seu caminho e o de Watanabe se cruzaram, foi sua estreia no mundo animístico. A colaboração passada o levou a convidá-la para seu primeiro anime como diretor interino, no qual ela teria que se desprender-se do estigma de “compositora de orquestra” para mergulhar no universo da música negra norte-americana. Um desafio, sem dúvida. Desafio o qual ela, a despeito do que parecem crer alguns, não venceu sozinha. Assim como venho tentando demonstrar que diretor algum, por mais brilhante que seja, é responsável por todos os méritos de uma produção, é também importante destacar que muito do que faz da trilha sonora de Cowboy Bebop algo ímpar se deve ao imponente time de colaboradores de Kanno.
O fato é que ela sempre contou com o auxílio de músicos de alto nível. O violoncelista Hajime Mizoguchi, amigo pessoal da musicista, deu suporte a parte das composições de Macross Plus e Escaflowne, e arranjos fornecidos pela multiartista Akino Arai a acompanhariam por toda sua carreira. Não dominando por completo as linguagens do blues e do jazz, a forma mais eficaz de realizar um trabalho nelas baseado parecia ser reunindo músicos especializados nesses estilos. Assim nasceu o Seatbelts, grupo de formação variante, composto por proeminentes instrumentistas japoneses. Entretanto, músicos nova-iorquinos e parisienses, além de convidados das mais diversas partes do globo, colaboraram também com essa prolífica produção musical, que, levando em conta os trabalhos relativos à série de TV e ao filme, resultou em mais de 10 álbuns, além de um DVD ao vivo.
Os méritos dessa realização de dezenas de indivíduos foram quase que totalmente atribuídos a Yoko Kanno, que, além de compor, tocou piano nas gravações do Seatbelts. Watanabe, ao discorrer sobre a importância de seus diversos colaboradores em entrevista locada no site Into the Matrix, disse que “a maior de todas é a compositora Yoko Kanno. Ela e sua música são uma parte essencial de Cowboy Bebop. Por exemplo, há cenas nas quais eu não pretendia adicionar música, mas então ela surge com algo que se encaixa perfeitamente. Às vezes ela aparece com uma música para uma cena específica, mas que acabo utilizando em uma parte completamente diferente. Por diversas vezes ela trouxe uma tonelada de ideias que eu acabarei usando dos mais distintos modos, os quais ela não necessariamente previu.” A fala do diretor põe em evidência o que considero o aspecto mais notável da trilha sonora do programa: o sentimento de pertencimento, a sensação de que determinada música foi pensada, escrita, tocada e gravada única e exclusivamente para uma cena, um contexto, um momento ou conjunto de momentos que a eternizaria. Voltemos às cenas descritas no começo do texto para colher alguns exemplos.
Rush, apresentada pela turma japonesa dos Seatbelts, é uma das faixas que deixa claro por que se pensa instintivamente em jazz ao se pensar em Cowboy Bebop. A curta peça, de pouco mais de três minutos e meio, traz para a tela todo o poder oferecido por uma big band selvagem. Porém, ainda mais interessante é o fato de fazê-lo apenas uma vez durante toda a série. Sim, essa composição está presente apenas no confronto entre Spike e Asimov, como se sua incrível energia tivesse sido gerada para embalar apenas essa igualmente impressionante batalha. Esse caráter faz com que o fã, ao ouvir determinada música, seja transportado novamente para a cena a qual ela verdadeiramente pertence. Difícil ouvir a terrificante Bad Dog, No Biscuits, na qual parecemos ver uma mistura do caótico Charles Mingus e dos temas de James Bond, e não pensar na perseguição à Ein no segundo episódio. O mesmo ocorre com Too Good, Too Bad, que, apesar de não tocar apenas uma vez durante o anime, não pode ser desassociada da já mencionada sequência de lançamento do Columbia.
Todas as faixas citadas até então são creditadas aos companheiros japoneses de Kanno, mas talentos de NY, outrora e ainda hoje berço de muitas criações jazzísticas, também marcam presença. Piano Bar, grande solo do virtuoso Mark Soskin, que nesta performance parece evocar algo de Bobby Timmons, pode ser ouvido muitas vezes ao longo do programa, mas sem nunca ser tocado de modo alheatório, estando sempre ligado à ideia do fracasso de nosso grupo de aventureiros. Essa é uma das poucas peças já comentadas por Kanno, que disse a seu respeito: “Compus essa música tendo em mente a ‘piada’: E no final das contas, eu não fiz nenhum dinheiro hoje, como sempre.” Trata-se, portanto, de um deboche, que combina com o modo como nosso bando de perdedores aceita sua própria condição, como pode ser visto no final de Honky Tonk Women e My Funny Valentine, ambos fechados pelas notas de Soskin. O pianista também integrou o quarteto (completado por Bobby Previte, Booker King e Paul Shapiro) responsável por Odd Ones, talvez a melhor das muitas sessões de bebop que permeiam as cenas, que será para sempre lembrada em razão do curto, porém emblemático confronto entre as naves de Faye e Spike no 15º capítulo. A propósito, Paul Shapiro, que flutua sobre os demais em Odd Ones, emprestou sua habilidade no sax tenor para, junto com Steve Wilson, Bob Debellis e Jim Hartog, realizar The Singing Sea, que considero a mais bonita das músicas de CowBe. Com o profundo vocal da mundialmente reconhecida Tulivu-Donna Cumberbatch, que neste momento de inspiração lembra Sarah Vaughan em seus melhores dias, o mais curioso sobre a faixa é que a versão lançada para o público (a linkada acima) não toca em momento algum durante a série. Mas seus ecos são facilmente reconhecidos, uma vez que sua melodia serviu de base para Cosmos e Farewell Blues, ambas ligadas às lembranças dolorosas de Jet, e também para Stella By Moor (referência ao standard dos anos 1940 Stella by Starlight, de Victor Young), que ouvimos somente nos momentos mais tristes do já melancólico episodio Waltz for Venus.
Esse tipo de arranjamento e reaproveitamento de canções é um dos muitos méritos de Kanno, inclusive. Adieu – outra peça da qual ouvimos muitos ecos, sem jamais conhecer a totalidade durante a série –, por exemplo, teve o vocal encantador de Emily Bindiger retirado, o grande trabalho de outro quarteto (Tony Reedus, Mark Soskin, Booker King e Stu Cutler) obscurecido, e se transformou em Memory, tema das lembranças de Spike. De modo análogo, Goodnight Julia, solo de sax que capta a essência do personagem Gren, foi, com alguns acréscimos, convertida em Space Lion, que encera o que é para mim o ponto alto do anime, Jupiter Jazz Parte 2. Ainda nessa linha, Spokey Dokey, delta blues que deixaria orgulhosos mestres como James Cotton e Willie “Big Eyes” Smith, deu origem a Forever Broke – ambas creditadas a Tsuneo Imahori, compositor das trilhas sonoras Trigun e Gungrave e principal guitarrista dos Seatbelts.
Agora vamos à segunda cena. Rain, outra música com inegável senso de pertencimento, que toca apenas uma vez ao longo das mais de duas dúzias de episódios exibidos. Cristalizada no imaginário dos espectadores por prenunciar a primeira troca de golpes entre Spike e Vicious, a canção guarda uma história curiosa. O fato é que essa versão com vocal de Mai Yamane, que efetivamente toca em Ballad of Fallen Angels, não é do agrado de Yoko Kanno. Ela compôs a música pensando em ter Steve Conte como intérprete, o que acabou se mostrando impossível no primeiro momento, lavando essa demo ao ar. Posteriormente, Conte gravou sua versão, e foi ela a escolhida para ser lançada no primeiro álbum da OST de Bebop.
Entretanto, esse incidente não deve ser mal interpretado, pois Yamane é sem dúvida a colaboradora mais fiel de Kanno; acompanhando a compositora desde os primórdios, é a sua voz que ouvimos em After in the dark, de Macross Plus, em If You, de The Vision of Escaflowne, e em No One’s Home, do posterior Darker Than Black. Em Cowboy Bebop, temos o prazer de ouvi-la em Want It All Back, Don’t Bother None, Blue e na insuperável The Real Folk Blues. Aqui, vale mencionar que, apesar de compor em grande escala, Yoko Kanno raramente cria as letras de suas músicas. As das anteriormente mencionadas The Singing Sea e Adieu foram escritas por Chris Mosdell e Brian Richy, respectivamente. Já as canções interpretadas por Yamane, com exceção de The Real Folk Blues, são de autoria de Tim Jensen, principal letrista dos trabalhos de Y.K, que a auxiliaria também em Ghost in the Shell: Stand Alone Complex e Wolf’s Rain.
Tim e o já introduzido Steve Conte, figurinha carimbada nos futuros projetos da compositora, são também responsáveis por Call Me Call Me, outro número apresentado uma única vez. Marcando a resignada despedida de Ed e Faye, é a mais eficaz música do anime no que concerne a levar marmanjos às lágrimas. Falando em Ed, sua dubladora, Aoi Tada, faria a primeira incursão de sua hoje estável carreira musical com a estranha Wo Qui Non Coin, canção que, além de também tocar apenas no fatídico antepenúltimo episódio, Hard Luck Woman, está ligada a distante, mas afetuosa relação das duas protagonistas femininas. Ainda sobre os temas vocais da série, deve-se recordar Mushroom Hunting, inspirado trabalho de sete músicos nova-iorquinos que trazem para a atualidade o melhor do fusion de gigantes como Freddie Hubbard, complementado pela melódica voz de Tulivu-Donna Cumberbatch. Por fim, é sempre divertido identificar as participações de Gabriela Robin – que todos sabem ser um pseudônimo da própria Yoko Kanno –, ora creditada como vocal de apoio, ora como letrista.
As homenagens também estão vivas nas composições. Nesse âmbito, Go Go Cactus Man vem imediatamente à mente. Referenciando o legado deixado por Ennio Morricone na Trilogia dos Dólares, que, com seus assobios e acordes rasgados de guitarra, se tornaria sinônimo de trilha sonora de western, a músico não toca e nem poderia tocar em nenhum episódio além de Cowboy Funk. You Make Me Cool, por sua vez, se inspira em Blue Light, Red Light, de Harry Connick Jr. Mas a minha predileta nesse sentido é sem dúvida The EGG and YOU, um grande tributo ao trabalho realizado por Vince Guaraldi em Peanuts (por aqui, Charlie Brown, a meu ver a melhor trilha sonora com que um desenho animado jamais contou), trabalho este já reconhecido e aplaudido por artistas do calibre de Dave Brubeck (para um texto meu sobre o pianista, cliquem aqui), que imortalizou algumas das ideias sonoras de Guaraldi no estupendo álbum Quiet as the Moon.
Falemos agora da última cena. Durante o primeiro encontro de Spike com Pierrot Le Fou, vemos fragmentos da ruidosa Eyeball intercortados entre grandes intervalos de silêncio, sendo que este último predomina. É também o silêncio que dita o tom do tiroteio na catedral após Rain ser abruptamente cortada. O mesmo silêncio marca o compasso de The Real Folk Blues Parte 2, episódio em que, vale dizer, são tocadas apenas quatro peças. Silêncio; silêncio. Esse não é, como vocês devem estar pensando, um mérito de Kanno. Seu trabalho é criar a música. O de escolher como e quando utilizá-la é de Watanabe, que também tem a prerrogativa de não fazê-lo. Ligando o som no máximo quando necessário, e baixando-o a zero quando pertinente, o diretor mostra mais uma vez destreza ao construir sua obra. Desse modo, no encontro da música de alto nível fornecida por Yoko Kanno, pelos Seatbelts e por uma gama de preciosos colaboradores com o corte seletivo e preciso de Shinichiro Watanabe, nasceu a trilha sonora de Cowboy Bebop. E se você me disser que é a melhor já feita, não farei muita questão de dissuadi-lo. (Seria quase um ato herético não mencionar Tank! e The Real Folk Blues nessa parte do texto. Então eu aqui as menciono. Sim, eu as menciono. E isso é tudo. Afinal, o que mais poderia eu acrescentar ao mais perfeito conjunto de abertura e encerramento já entregue?)
Things ain’t what they used to be: O carma dos perdedores
Tank! é uma abertura tão fora do padrão que faz muitos esquecerem que, na realidade, a primeira música tocada na série é Memory. E o primeiro contato visual do espectador, embora ele talvez não dê grande atenção ao fato, se dá por meio de uma sequência dispersa de imagens que integram o passado do principal personagem.
Sempre achei essa uma decisão curiosa, e agora, após assistir a série pela terceira vez a fim de escrever este texto e de realizar toda a pesquisa por ele exigida, acredito enfim entender o motivo. É uma compreensão tardia, que, verdade seja dita, só obtive após ler a transcrição da entrevista de Watanabe para a versão americana do DVD, na qual o diretor, perguntado sobre qual seria o tema do anime, responde: “O passado de Spike, ou seu carma.” Partindo desse princípio, cheguei a uma conclusão um pouco diferente, que, contudo, não passa de uma extrapolação da alegação do realizador. Pra mim, Cowboy Bebop é uma série sobre o passado, não apenas o de Spike, mas o de toda uma classe de personagens a qual ele pertence.
Como já disse, esse universo não diz respeito aos grandes heróis de 2071 e a seus feitos. Pelo contrário, tudo o que conhecemos sobre o futuro proposto nos é transmitido pelos mercenários, os criminosos, os excluídos; em resumo, é uma história sobre perdedores, protagonizada pelos mesmos. Mas o que se entende por perdedor? A inalienável falta de dinheiro dos membros da Bebop e seu ambiente social precário fazem deles perdedores? Se fosse tal a definição, eu teria antes que reconhecer que não sou nada além de um perdedor. Não, não falo de condições materiais. Neste caso, eu definiria os perdedores como aqueles que não conseguem se desvencilhar do passado, aqueles que, quer o reneguem, quer o persigam, quer lutem contra ele, são incapazes de abandonar aquilo que não podem mudar.
Spike Spiegel, por exemplo. O personagem é uma grande mistura. Um cowboy (um cowboy do espaço) antes de tudo. Mas seu código particular, que, embora não pareça classificar como pecado trapacear ou mesmo matar, não chega a ser de todo amoral, certamente lhe confere traços de um ronin, um samurai sem senhor, ou, para ser mais preciso, um samurai por ele expulso (no caso, o sindicato do crime a qual pertencia). Interessante notar que ronin (浪人) significa literalmente Homem-Onda; o homem sem rumo, sem destino ou propósito, que, assim como as ondas, segue em frente, devastando o que estiver em seu caminho. Essa questão seria abordada a fundo na obra seguinte do diretor, Samurai Champloo, mas já a vemos sendo tecida em Bebop. De volta ao Spike, ele é habilidoso, intrépido e debochado; odeia crianças, animais e mulheres que agem como homens; não fraqueja perante a morte, e até mesmo parece procura-la, vide seu anseio de enfrentar monstros como Wen e Pierrot Le Fou. Mas, apesar de tudo, ele Spike teme o passado. É o que indica a cena inicial de Sympathy for the Devil, quem sabe a única em toda a série na qual vemos medo em seu rosto.
A lembrança, apresentada no 6º episódio, é a de uma operação que substituiu um de seus olhos por uma prótese, fato que só viríamos a conhecer nos últimos minutos do anime. O olho mecânico que carrega é a lembrança inseparável das tragédias de outro tempo. Em seus derradeiros momentos, Spike diz que este olho enxerga apenas o passado, ao passo que o remanescente vê somente o presente. O personagem está preso ao que já se deu, e também não possuí perspectiva de futuro. É por isso que, a despeito do temor, ele persegue o passado, que sempre surge como uma dupla de assombrações: Julia e Vicious.
Essas figuras não têm histórias, não têm motivações, não têm sequer sobrenomes. Elas agem tão somente como as personificações dos problemas não resolvidos do protagonista. Mas isso não impede que sejam fascinantes. Vicious, a meu ver, é a persona mais intrigante da série. Sendo a exata contraparte de Spike, ele não busca resolver o que ficou para trás, mas sim renega-lo, e, se possível, aniquilá-lo. “Não há nada em que acreditar. Não há sequer necessidade de acreditar”, diz ele frente a um companheiro de guerra que apunhalou pelas costas; “Anjos que caem do céu tem que se transformar em demônios”, diz ele para o melhor (talvez único) amigo que já teve, enquanto se prepara para mata-lo; “Nada”, diz ele frente a um pelotão de fuzilamento que pergunta se deixará para trás palavras ou objetos materiais. Um niilista que não crê no transcendente e que almeja esmagar o imanente; um monstro que existe para apagar as existências de terceiros, ao passo que não deseja deixar nenhum rastro da sua própria; um vilão, no sentido mais profundo da expressão. Um tremendo personagem.
Pois bem, as cores bases de Julia e Vicious são o preto e o cinza, respectivamente – cores que destoam dos vivos tons apresentados nos figurinos dos demais personagens. Representam o fúnebre, o luto, a constante ameaça de morte que o passado traz a Spike; não por acaso, em Ballad of Fallen Angels, primeiro episódio em que esses espectros sobem ao palco, o ás de espadas, símbolo da morte no baralho de tarô, é mostrado repetidas vezes. Falando em cores, importante destacar outro significativo detalhe de direção que fez com que o adjetivo cinematográfico fosse tantas vezes empenhado para definir CowBe. Notem que na primeira sequência de imagens desta parte do texto, que é também a primeira do anime, um tom de azul é usado para caracterizar o passado. O azul é sabidamente a cor da melancolia, e é nesse sentido que Watanabe o emprega não só nas lembranças trágicas de Spike, como a de sua “primeira” morte ou a de seu último encontro com Julia, como também no encerramento.
Já as lembranças mais agradáveis – que jamais chegam a ser felizes – são mostradas em um amarelo-dourado. É sob essa luz que Spike se recorda de seu primeiro encontro com seu grande amor, no final do 5º episódio. E, fato que poucos notam, é também com essa tonalidade que nos aparecem os recortes de memória que o personagem esboça ao subir as escadas da sede da Dragão Vermelho, caminhando rumo ao fim.
Há algo de poético em pensar que, no ponto crucial, ele se lembrou das coisas boas. O primeiro encontro com Julia, a primeira noite, o Vicious com o qual ele ainda podia lutar lado a lado. Essa pequena sequência deixada pelo diretor dá ainda mais força à frase eternizada no capítulo final: “Eu não estou indo até lá para morrer., mas para descobrir se estou mesmo vivo.” Acredito que ele tenha encontrado sua resposta.
É. O passado de Spike talvez seja o tema da série, mas ele certamente não é o único por ele atormentado. Mocinhos ou bandidos, esse acaba sendo o cerne das decisões de quase todos os personagens. Ao longo do anime, símbolos recorrentes são utilizados para dar ênfase a essa ideia. O corpo (além de Spike, também é o caso Jet e Faye), fotografias e caixinhas de música são os mais recorrentes. Deixemos o primeiro para depois, e nos debrucemos sobre demais.
Fotografar é capturar momentos. Congelar um presente que, a longo prazo, se torna memória tangível. Não surpreende que nossos queridos perdedores, atormentados pelo que já foram, guardem nas fotos seus segredos, suas raízes. É o que acontece com Victoria Terpsichore, a VT de Heavy Metal Queen, figura que, ainda que já tenha deixado sua identidade para trás, continua a carregar consigo uma lasca do passado, o que ajuda Spike a matar o enigma que cerca seu nome. O mesmo mal acomete Doohan, que, numa oficinazinha no meio do nada, mantém o nostálgico mural que resgata o grande engenheiro que fora um dia. Não preciso dizer que isso se repete com Annie, a solitária dona de uma loja de conveniência que, num porta retratos, encara os tempos em que ainda havia honra e afeto no mundo da máfia.
As caixinhas de música têm participação mais discreta. Stella, para quem foi cunhada a linda Stella By Moor, é a dona da primeira. Para ela, uma cega, é o mais significativo dos objetos trazidos por seu irmão como indicadores do desconhecido mundo exterior. Posteriormente a caixa passa a simbolizar a ausência e a evocar lembranças desse irmão. Aliás, essa trágica relação de parentesco soa como uma homenagem àquela vivida pelos personagens Mary e Danny Malden em Cinzas que Queimam, um dramático noir dirigido por Nicholas Ray.
Já a segunda e última pertence a Gren. Pobre Gren. Se a acumulação de signos vem acompanhada da acumulação de sofrimento, ele só pode ser o mais derrotado dos personagens do programa. Acorrentado ao passado não só pelo pequeno presente de Vicious, cuja melodia o levou a compor Goodnight Julia, mas também pelo mural de fotos que abarca momentos de toda a sua vida até a fatídica guerra de Titã, percebemos que ele está ligado aquele deserto sem vida de tal modo que seu último desejo foi a ele retornar.
Veríamos ecos desse trauma pós-guerra em Vincent Volaju, o magistralmente construído vilão do filme de Bebop, filme este que, como venho repetindo, está além de mim no momento. Tornando a falar de Gren, o personagem carrega também no corpo, de modo inexpugnável, as marcas da traição sofrida. Tendo sido submetido a testes com drogas experimentais após o injusto encarceramento, seu corpo de soldado se transfigurou no de uma mulher. Onde alguns enxergam uma torpe metáfora para a sexualidade do personagem – o que, em teoria, explicaria seus demasiadamente fortes sentimentos por Vicious –, eu vejo um dilema mais abstrato, o do homem destituído de sua condição, e, mantendo sempre o passado como tema central, o do homem que não mais pode assim se considerar. Qualquer que seja a interpretação correta dos fatos, ela não poderia dar a Jupiter Jazz ou a seu personagem-chave um sentido menos trágico.
Seguindo a linha do corpo, falemos de Jet Black. Vejam bem, o bandleader nem sempre é o músico mais importante de uma formação; por vezes, sua função é manter o ritmo, selecionar o que será tocado e despertar o máximo do talento de seus companheiros. Assim Art Blakey substituiu Horace Silver e manteve os Jazz Messengers unidos por tantas décadas, e assim Jet Black (ironicamente, também o nome de um baterista, fundador do grupo The Stranglers) comanda a tripulação da Bebop. É sua nave, e são suas regras. Ele toma as decisões, ele escolhe os alvos e ele resolve os problemas. A alguns parece estranho que o líder seja o menos carismático dentro da equipe, já eu penso que é justamente por isso que ele é o líder. Ríspido, sisudo e ardiloso, Jet é o arquétipo dos detetives da literatura e dos filmes noir (“Costumava ser chamado de Black Dog porque, quando pegava um aso, eu nunca o soltava”), gênero que Watanabe domina como poucos na atualidade, o que viria a mostrar em A Detective Story, um dos melhores curtas de The Animatrix. Porém, traindo Sam Spade e Philip Marlowe, Jet não é atraente, e, além disso, tende a fraquejar frente a um adversário: o passado.
Jet e Spike são essencialmente opostos. O primeiro é um ex-policial, o segundo, um ex-gangster. Este se tornou um cowboy por opção, aquele foi impelido a isto. Mas, no que concerne aos fantasmas de outrora, ambos são bastante parecidos. Assim como o olho de Spike, o braço do Black Dog é a memória de fracassos sentida na carne, dia a dia, para todo o sempre. Entretanto, assim como sua saída da ISSP (Inter-Solar System Police), a prótese mecânica parece ser uma punição auto-imposta; em Black Dog Serenade, Faye pergunta por que ele simplesmente não faz a reconstrução do braço, processo que, segundo ela, não é complexo nem dispendioso, ao que ele simplesmente responde: “Esta nave é a minha nave. E este braço é o meu braço. Não me diga o que devo fazer”. Mas deixemos o 16º episódio para depois. Tratemos antes de Ganymede Elegy.
Os tons de cinza, em alusão aos filmes noir das décadas de 40 e 50, foram escolhidos pelo diretor para marcar as lembranças de Jet. O relógio parado é o totem dos acontecimentos que o personagem não consegue esquecer. O tempo, contudo, começa a se mover novamente no 10º episódio, quando, após acertar as contas com o Alisa, o velho amor que o abandonou, o relógio é lançado com escárnio nos mares de seu planeta natal. A ação simbólica que fecha o episódio pontua outra importante diferença entre Jet e seus companheiros: o fato de que, enquanto os fantasmas do ronin trazem apenas a morte (a morte, no caso de Spike, é a própria redenção, este é seu carma), os seus, depois de confrontados, trazem a libertação. As coisas se desenrolam da mesma forma no incidente com Udai Taxim, que, morto após expor a verdadeira sobre a perda do braço do ex-detetive, é enterrado para sempre.
Jet é um personagem amargurado com o que aconteceu, é definitivamente um personagem triste, mas não é verdadeiramente um personagem trágico. O que vemos ao longo da série, na realidade, é seu processo de desvencilhamento, concluído em Boogie Woogie Feng Shui, a mais subestimada session do anime. Neste capítulo, uma grande homenagem ao noir, que conta, inclusive, com uma expositiva e espirituosa narração em primeira pessoa ao fundo, vê-se algo além de uma história de detetive, vê-se o processo de aceitação de uma morte. Aceitar a morte é conviver com o imutável passado; é, em certo sentido, a sua superação. E, ainda que seja Meifa a lidar com o óbito, é de Jet que se fala. É ele que, já tendo resolvido as próprias questões, consegue ajuda-la a solucionar as suas. Como os outros, Jet Black é um perdedor que persegue o passado, mas talvez seja o único deles a abraça-lo antes do término da série. Sua participação apagada nos cinco últimos episódios está aí justificada: Jet já pagara seu carma. Nada mais havia a contar a seu respeito.
Mas o que falta de trágico a Jet, Faye tem de sobra. Seu corpo literalmente pertence ao passado. Despertada após meio século em um futuro desconhecido, a personagem se destaca por não ser assolada por tortuosos acontecimentos, e sim por ser incapaz de recordá-los. Enquanto os outros seguem uma jornada de reconciliação, ela trilha solitária o caminho da redescoberta. E quem a acompanha nessa caminhada nota, através da fita de vídeo e de seus outros lapsos de memória, que, contradizendo o arquétipo da femme fatale a ela confiado, Faye Valentine é a personagem mais pura, e eu diria mesmo a mais infantil de Bebop. O filtro branco escolhido para representar suas lembranças, sempre atreladas à infância e à adolescência, não me deixa mentir.
Esse é o porquê dela evitar laços afetivos, e também o motivo que a levou a fugir do restante da turma em mais de um momento. Alienada das lembranças de outrora, ela teme estabelecer novos momentos preciosos que, por conseguinte, poderiam ser outra vez perdidos. Esse diagnóstico é feito por Gren, em um encontro que só se dá em razão de uma dessas ocasionais fugas. A esse respeito, vale apontar outro detalhe que mostra que o uso de cores que tenho buscado valorizar não é alheatório: reparem como na sequência abaixo, retirado do primeiro contato entre Faye e Gren, a tonalidade carmesim evoca o mesmo onirismo encontrado por Spike ao despertar apavorado da torrente de lembranças relativa à sua operação.
Ed, por sua vez, não compartilha o carma dos perdedores. Agindo como o misto de criança e fera idealizado por Watanabe e Kawamoto, ela vive no presente, sem preocupação aparente com o que acaba de acontecer e com o que virá logo a seguir. Mas a garota não deixa de contribui com a questão. MPU, a inteligência artificial que ganha consciência no episódio em que somos apresentados a mais carismática persona da série, redesenha na superfície da Terra as linhas de Nazca, baseando-se na memória armazenada antes do incidente com o portal lunar. Esse anseio pelo berço para sempre perdido é melhor abordado com o pai da criança gênio, pouco antes de sua emocionante despedida em Hard Luck Woman. Esse ilustre personagem toma para si a inútil tarefa de mapear a Terra, apenas para que, um minuto, uma hora ou um mês depois, a devastação provocada por alguma das periódicas quedas de meteoritos apague o sentido de seu trabalho. Esse esforço digno de Sísifo é também uma espécie de carma: os humanos, que destruíram para sempre seu Éden, se veem condenados à infrutífera tentativa de restaurá-lo. Por algum motivo, é um destino que não me parece tão distante.
Fechando o raciocínio, percebo que eu, assim como todos os fãs de Cowboy Bebop, estou preso ao passado. Quinze anos atrás um anime foi lançado e as coisas nunca mais voltaram a ser como antes. Ele agora faz parte da minha história, tendo criado memórias das quais não consigo me livrar. É por isso que, quando revejo Jet preparar a última refeição de Spike, e constato que se trata do mesmo qing jiao rou si que o assisti cozinhar no primeiro episódio, nada posso fazer além de me juntar à dupla na gargalhada repleta de pesar compartilhada a seguir. Cowboy Bebop sem dúvida deixou uma porção de lembranças como essa para cada um de seus espectadores. Talvez sejam lembranças um pouco tristes, mas creio que, não fosse por isso, não seriam assim tão fortes.
The best is yet to come: Uma tardia conclusão
Consigo enfim vislumbrar o final do texto. Não falta muito agora. Se você, seja lá quem for, chegou até aqui, eu gostaria de agradecer sinceramente, e pedir que me aguente por mais um ou dois parágrafos.
Bem, certamente há algo de profético no final de uma década. É como o fechamento de um ciclo que carrega promessas daquilo que reserva o próximo estágio. O que dizer, então, dos anos finais de um século? E daqueles que encerram um milênio? Ghost in the Shell, de Mamoru Oshii, Neon Genesis Evangelion, de Hideaki Anno, Perfect Blue, de Satoshi Kon, Serial Experiments Lain, de Nakamura Ryutaro, entre outros projetos do final dos anos 90, hoje tidos como clássicos, surgiram como que para apontar quais seriam os nomes dignos de atenção na Era que começava. Destacando-se entre os produtos pessimistas dessa leva, Cowboy Bebop, de Shinichiro Watanabe, foi também um dos projetos que, no ocaso do milênio, conquistou seu espaço no cânone dos animes.
Realizado por uma das mais talentosas equipes já reunidas, Bebop foi como um experimento de um grupo de amigos. Como devem ter notado ao longo desta dissertação, boa parte dos nomes de destaque do time já havia trabalhado em conjunto antes, e certamente seus caminhos tornariam a se cruzar. O título marcou a despedida do produtor Masahiko Minami, do animador Hiroshi Osaka e do designer Toshihiro Kawamoto da Sunrise, e o filme que se seguiu celebrou a criação do estúdio por eles fundado, o Bones. Nessa companhia, a roteirista-chefe Keiko Nobumoto viria a realizar seu maior trabalho, Wolf’s Rain, e um de seus assistentes, Dai Sato, após trabalhar novamente com Watanabe em Samurai Champloo, faria nome com Eureka Seven e Ergo Proxy. Cowboy Bebop lançaria mundialmente a hoje aclamada – e atacada – Yoko Kanno. Cowboy Bebop permitiria que Watanabe se tornasse um dos poucos diretores com liberdade criativa quase absoluta na indústria, o que, além de garantir a entrega de séries de inconfundível autenticidade, também permitiria o crescimento de sua influência e a sua consequente escalada como produtor, conferindo-o a chance de revelar novos talentos como Sayo Yamamoto e Shingo Natsume. Foi um marco, uma escola; foi o tipo de produção que permitiu que animes como o recente Space Dandy, que reúne boa parte do time acima comentado, continuassem a ser possíveis. É, enfim, por conta de coisas como Cowboy Bebop que eu hoje me dedico a escrever sem propósito 30 páginas sobre animação japonesa. É algo a ser eternamente revisitado, rediscutido, redescoberto.
…
Observações:
Ressaltando que a primeira exibição completa da série só foi concluída em abril de 1999, me vejo no direito de forçar um pouco a barra e classificar esse como um post em homenagem aos 15 anos de Bebop. Vejam só, 2014 é um ano especial na carreira daquele que, como creio já ter deixado claro, é o diretor que mais admiro. É o ano em que Samurai Champloo, nada menos que meu anime predileto, completará uma década. É o ano em que Macross Plus, a meu ver o melhor produto da franquia, comemorará vinte primaveras. É ainda o ano em que um novo projeto de Watanabe, o há pouco citado Space Dandy, veio ao mundo. Já tendo escrito brevemente sobre Sakamichi no Apollon na ocasião de seu encerramento, decidi que 2014 será também o ano em que prestarei essa pequena homenagem ao homem e comentarei, na ordem apresentada, todas as suas obras, com exceção dos curtas. Restam, portanto, três textos a serem escritos. Concluí-los não é exatamente um compromisso. As coisas podem apertar e pode ser que eu não consiga fazê-lo. Mas deixo aqui expresso meu compromisso com a tentativa.